sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

DIÁRIO DA VIAGEM INAUGURAL DO M/T BRITTA THERESA

PARTE I 

2ª Feira, 22 de Setembro, 1º dia de viagem...
Realmente saiu-me na sorte grande uma equipagem de máquinas de 1ª apanha.
A equipe de máquinas é constituída por um chefe e um 2º Eng.º ambos ucranianos. O rapaz vai no seu 3º contracto, ou seja, tem mais boa vontade que conhecimento e o que é engraçado é que o chefe deixa-o fazer o que quer causando assim alguns estragos. O camarada chefe é um artolas, sabe pouco disto e tem uma noção de prioridades muito engraçada. Fiquei com a impressão que ontem saímos dentro do horário porque desencravei uma série de situações. O chefe deixou todas as operações para o fim e depois não as soube fazer, pois todas as tentativas eram demoradas, estávamos a desbravar terreno.
Hoje, está um calor de morte e a seguir ao almoço fui á proa apanhar e ar e tive a sorte de ver uma baleia.
E lá continuo a caminho de Singapura....
É de noite e posso dizer que talvez estes sejam os meus dez dias mais duros da marinha mercante. O ucranianos esta tarde deram-me que fazer e muito. O ar condicionado está a trabalhar mal, tenho 40º no camarote. Já tive esta tarde uma quebra, tou rebentado e praticamente hoje não refrigerei, estou quentíssimo, suo para caraças o que é óptimo para fazer crescer as minhas pedrinhas pois a água quase não passa pelos rins e já começo a sentir os efeitos. Estou neste momento no camarote a escrever e a ouvir Romanza de Bocelli. O suor corre em rios pelo meu corpo abaixo. Faltam 2500 milhas náuticas para chegar ao meu destino.

3ª Feira, 23 de Setembro, 2º dia de viagem
Já posso dizer que estive no inferno, tem sido um sacrifício terrível para todos, o ar condicionado não tem estado a trabalhar em condições e só hoje á tarde é que aparentemente arranjei uma solução, se não der tenho sempre um ultimo recurso ou não seja eu um gajo da máquina. Temos tido temperaturas superiores a 40ºC nos camarotes, está mais fresco no exterior, que marca 34º, do que cá dentro, a roupa está toda ensopada em suor. Já nem vale a pena pôr roupa lavada, dura 3 minutos a ficar igual á anterior. Por duas vezes tive que parar, tonturas e desidratação, já vou a meio do dia e já abati 3 garrafas de água, das de litro e meio, fora os cafés e os sumos. Estou tão carenciado que até fruta já como com prazer. Só que começo a recear, e bem, que esta desidratação toda me vai afectar os meus rins.
O ar condicionado continua a fazer um fresquinho pequenino e talvez só lá para a noite é que consiga baixar um bocado a temperatura, é preciso vencer esta inércia térmica toda.
O que achei piada hoje é que quando fui dar uma ajuda ao 2º com uns filtros da maquina principal, filtros esses que têm dado muito trabalho descobri que o menino não sabe limpar filtros, não admira que ficassem sujos ao fim de meia dúzia de horas de trabalho. Primeiro foi obrigar o chefe a limpar os filtros, não queria até que tivemos blackout, agora mostrar que se os limpar bem eles duram muito mais tempo e no fim ele tem menos trabalho, engraçado, ás vezes temos que mostrar isso ás pessoas…
Hoje o comandante disse-me que estávamos a caminho de um tufão e que as vagas a 90 milhas dele seriam de 12 metros, só espero que esse bicho se afaste como está previsto senão vamos apanhar um grande porradão…
É de noite e estou podre, acabei de pôr as frigoríficas dos mantimentos a trabalhar, foi a tarde toda, de repente deixaram de trabalhar e tive que fazer uma revisão completa, uma coisa tenho de reconhecer e sem modéstia nenhuma, sou muita bom mas ainda está muito quente, amanhã vou passar o dia no ar condicionado outra vez, agora só mesmo para ver se melhoro as performance mas acho que isto deve estar no limitezinho.

4ª Feira, 24 de Setembro, 3º dia de viagem
E o inferno continua, o ar condicionado estabilizou e só torna as coisas um pouco mais suportáveis, consegue pôr os camarotes as uns 30 graus, se ficarmos muito sossegados talvez não suemos nada, a humidade é atroz.
Os camaradas agora não conseguem esgotar os tanques de esgoto e sludge, o chefe deixa o 3º e pira-se, deve ficar á espera que eu resolva. Hoje de manhã tentei ajudar o rapaz a pôr em funcionamento o separador de águas oleosas. A certa altura chamei-o á sala de controlo e gritei-lhe para se focar num objectivo e não mexer em tudo ao mesmo tempo e a fazer a m**** que fez. Aquilo é só óleo derramado e espirrado, nunca vi nada assim. Desisti e fui-me embora, não me entendo com esta gente, é daquele estilo que não sabe nada e quando se tenta explicar qualquer coisa começam logo a explicar-nos outra que não tem interesse nenhum.
Estou muito cansado e totalmente desidratado.
Comecei a organizar a parte do stock de peças que era uma das minhas tarefas que só agora consigo fazer.
Temos uma oficina e aquela besta ainda nem uma chave lá colocou, não fez nada. É certo que não teve tempo muito tempo mas bolas, existem pequenas tarefas que feitas logo de início poupam muito tempo depois mas isso é outra das coisas que a maior parte dos pobres de espírito não apreendem, especialmente aqueles que trabalham muito, parecem umas bestas de trabalho e no fim, espremido só sai m****.
Vou descansar e ouvir Mozart.
  
5ª Feira, 25 de Setembro, 4º dia de viagem
Hoje morri mais um pouco, é o mínimo que se pode dizer, tinha acabado de tomar o pequeno-almoço, estava com o meu café a apanhar o fresco da manhã e preparar-me para mais um dia de calor, e ainda não era 8 horas e já a t-shirt estava ensopada. O chefe apareceu, vindo da casa da máquina onde tinha estado, apareceu com o pequeno-almoço na mão e comeu cá fora. De repente o ventilador da cozinha mudou de som e olhei logo para o mar e vi a velocidade a diminuir, o ruído da máquina mantinha-se pois é um sistema de hélice de passo variável, fui á Ré ver o rasto e reparei que não tinha hélice, estava em neutro e também reparei que o chefe olhava calmamente para o mar e não tinha reparado em nada o que para um profissional do mar é indesculpável. Corri para a casa da máquina e o problema era o mesmo, filtros de tal maneira sujos que a máquina tinha ficado sem combustível, mais uma vez aquela besta muda o filtro e não o limpa. A máquina já se tinha mandado abaixo, o gerador do veio estava-se a arrear e finalmente tivemos um blackout. O diesel gerador arrancou normalmente e tentou-se solucionar a questão, limpando filtros á pressão. Foi de tal maneira que na 1ª tentativa de arrancar com a máquina ela agachou-se e mais uma vez tive a prova de que o gajo não percebia nada disto pois parou-me a circulação do fuel quase causando uma paragem total da instalação. A máquina arranca mas com dois cilindros a menos, vou abrir as tampas e pura e simplesmente caí, não deu mais, o cansaço, o calor, o suar constante, a perda de líquidos e sais aliado á correria constante deram os seus frutos, caí. Do chão dei instruções para abrir a porcaria das tampas e lá fiz um esforço para me levantar e dar uma porrada na bomba nº7 que começou a injectar, ela tinha ficado encravada na posição toda fechada. O esforço tinha sido demais e fui ao chão outra vez e dei instrução para fazer o mesmo á outra bomba. Arrastei-me até á sala de controlo e lá já não aguentei mesmo mais, já era mesmo a minha bomba a falhar e tive de pedir ao 2º que rapidamente me desse água com duas saquetas de sal e dextrose que felizmente estavam ali, as duas últimas. Impressionante a recuperação que se tem só por se tomar aquela água com sais, mas o que interessa é que regularizou a batida cardíaca e a tensão mas deixou-me de rastos. Fui para cima, para o camarote medir a tensão a apanhar um chocolate e depois fui até á ponte, pois de lá podia monitorizar a máquina e onde aproveitei para tomar um café. Fiquei sentado na porta da asa da ponte uma boa hora a apanhar corrente de ar para refrescar.
De manhã ainda voltei á máquina para ver uma coisa que me estava a incomodar, não se conseguia esgotar as águas que já se acumulavam. Quando cheguei o 2º mostrou-me que tinha conseguido pôr aquela coisa (separador de águas oleosas) a trabalhar. Foi um alívio enorme e dei-lhe os meus mais sinceros parabéns
Á tarde voltei á casa da máquina, depuradora de óleo não funcionava, problema com a bomba que tinha desferrado, lá consegui que aquela porcaria ficasse a trabalhar. Perda de água por fuga de vapor, pois era visível na chaminé e nós não nos podemos dar ao luxo de perder água. Subi para a caldeira para ver as válvulas de segurança mas as condições estavam tão más e eu tão fraco que saí porque senão tinham que me ir lá buscar, estou mesmo muito fraco. Enquanto me refrescava cá fora outra vez pus-me a pensar no problema e fui fazer uma verificação e cheguei á triste conclusão: “bad design” (mau desenho). Aquele vapor não vinha de uma fuga das caldeiras mas sim do respirador do tanque dos condensados que não era refrigerado.
Depois disto tudo fui fazer as listas para as quais era suposto ser o meu trabalho.
…….
Como eu me sinto?? Cansado, extenuado e com muita vontade de me ir embora. Não sou de desistir mas também não me apetece deixar dois gatos órfãos por causa de uma porcaria e já estou naquela de apenas aguentar…
Aiiiii!!!! A m**** do rim direito deu um ar da sua graça….
Agora vou tentar descansar até amanhã…

 6ª Feira, 26 de Setembro, 5º dia de viagem
E a saga continua, hoje até passei um dia bonzinho, de manhã só papeis, á tarde reparar e pôr em funcionamento o incinerador, o totó não dava com aquilo e nunca daria e depois mais um relatório até á hora do jantar.
Jantei calmamente e quando me preparava para pôr o monte de esterco que é a minha roupa para lavar descobri que não havia água. Calmamente fui á casa da máquina para avisar e foi quando descobri que as alminhas caridosas andavam de um lado para o outro pois os tanque de água do navio estavam vazios o que não é uma notícia muita agradável quando se está no meio do oceano. Dei uma volta olhei e mirei e disse ao 2º maquinista para abrir a caldeira auxiliar. Os meus piores receios tinham-se tornado realidade, a caldeira estava encharcada, inundada o que significava que estava rota. Tínhamos perdido 40 toneladas de água por ali sem se dar por isso. O que me chateia é que já tinha tido uns indícios disto, já o tinha escrito e até já tinha aberto a caldeira para a inspeccionar sem resultados nenhuns. Hoje como a caldeira foi isolada a abertura aumentou e provocou esta perda.
Carregar o navio nesta situação nem pensar, qual o destino do navio agora também não sei. Só sei é que amanhã este menino vai entrar numa sacana de uma caldeira através de um buraquito, estou tão feliz…..
Estou no camarote a tentar arrefecer um bocado para ir descansar, amanhã vai ser duro outra vez, não posso dizer que esteja muito confiante pois ainda estou muito fraco. Entretanto vou bebendo o meu whisky….

Sábado, 27 de Setembro, 6º dia de viagem
Passei a noite toda com a caldeira na cabeça, como ia fazer o trabalho e o que iria fazer. De manhã tinha a decisão tomada de se fosse necessário e possível eu soldaria a caldeira para tentar salvar a viagem.
De manhã lá fui eu para a caldeira e não consegui entrar lá dentro, o buraco era pequeno demais. Só me restava mesmo era sacar o conjunto do queimador e anel que suporta o queimador e isso só o faço a pedido da companhia, eu sou um consultor e aqui a bordo estão um comandante e um chefe de máquinas. Se a companhia me pedir eu faço o trabalho e mesmo assim com muitas reticências porque içar uma peça muito pesada num pequeno navio a navegar é um grande risco, um balanço maior e a peça pode destruir o equipamento á volta.
Entretanto respondi a um email merdoso que me mandaram e, engraçado, a resposta já veio e mansinha. A companhia já teve muita sorte em me ter aqui e ter descoberto a tempo este problema se o tivesse descoberto com a carga a bordo ver-se-iam bem aflitos.
Agora ando ás voltas com o incinerador outra vez, descobri que não queima sludge e começo a desconfiar de má programação ou de ligações erradas, está-me a dar um erro que é falso.
(mais uma má notícia, amanhã acaba o meu whisky, vou ficar a seco a não ser que abra uma garrafita de whisky chinês que comprei para levar para casa, vou pensar nisso)…. E o calor continua….
Hoje o navio recebeu uma daquelas notícias que as autoridades marítimas costumam difundir. Desta feita sobre pirataria na área e começa assim:

Warningaaaaaaaaa warningaaaaaaaaaaaaaaaaaa awarning
It appears that pirates are now starting again to attack ships in the eastern coast of Somalia. Attacks in the Gulf of Aden is also continuing…. Etc… etc.

È um longo documento que irei publicar no blogue para ver se as pessoas tomam conhecimento do que se passa. O documento fala por si.

Domingo, 28 de Setembro, 7º dia de viagem
E a saga continua… agora rebentou uma junta de dilatação do colector de evacuação da Máquina Principal, para os leigos, temos um furo no tubo de escape do motor principal. Nada a fazer, esperar para que não piore, aguentar os gases na casa da máquina e pedir uma peça nova com urgência coisa que já fiz, devia ter sido o chefe mas aparentemente o chefe sou eu, estou-me nas tintas.
Entretanto como prometido passei a manhã no incinerador a fazer testes e verificações e cheguei á triste conclusão que quem montou isto nem experimentou porque primeiro quando peguei neste equipamento nem energia recebia e agora aparentemente tem um erro ou má ligação no programador. Fica assim, fiz o respectivo relatório a descrever e assim fica, está na garantia.
Á hora do almoço chamaram-me á atenção que o sistema de detecção de incêndios estava off… bolas, é que eu até nem sou electricista nem nunca foi muito o meu forte e paixão mas lá fui ver. Procurar desenhos, procurar quadro de alimentação e ver o básico. Sim tinha os 230V metidos mas estava totalmente morto. Fui verificar os fusíveis de alimentação, estavam bons e foi quando reparei em 4 porta fusíveis de plástico numa posição estranha, estavam metidos mas não estavam fixos. Com o dedo pressionei (a tampa de plástico é claro) e rodei para fixar. Mal fiz ao ultimo aquela geringonça apitou e ficou a trabalhar, claro que chamei uma data de nomes que não posso aqui repetir ao indivíduo que montou aquela coisa, uma coisa é certa, desde o bisavô até ao bisneto foram todos corridos com lindos epítetos correntes da língua portuguesa. Mas depois sorri e disse para mim mesmo: “Sou mesmo um fucking good engenheiro….” E caguei para a modéstia…
Continua um calor desgraçado, agora custa-me a fechar as mãos pois estão a ficar sempre inchadas, ando um bocado dorido das costas e já não sei se é coluna se rins, PDI é de certeza. Na dobradiça do braço direito apareceu-me agora um vermelhão que além de me chatear solenemente faz-me uma comichão desgraçada. E ando com uma fome desgraçada, á refeição que é mais do estilo Indonésio que ocidental as doses não são generosas mas fico com uma fome. Começou ontem ao jantar, precisei de comer mais e hoje ao almoço quase que rapei a travessa. Devo estar muito carentezinho…. Coitadinho de mim… se calhar agora na Tailândia onde vamos carregar vou a uma dessas massagens tailandesas tão faladas e famosas mas tudo no máximo de respeito pois sou responsável por dois gatos que precisam muito de mim.
Ahhhh!!!! E faz hoje as 3 semanas para as quais fui contratado, se fosse um FDP dizia aos gajos que me arreava aqui na Tailândia e não em Singapura mas eu sou um gajo de palavra, disse Singapura e será em Singapura. Mas estou mortinho para sair daqui. È assim, está me está a dar gozo a parte técnica mas a tripulação de máquinas é muito fraca e não confio minimamente. Quando se tem um chefe tão burro que pendura ferramentas com abraçadeiras de plástico de maneira que as temos de rebentar de cada vez que se utiliza acho que não vale a pena fazer mais comentários. Se o chefe precisa de consultoria para pendurar ferramenta só posso dizer que o trabalho torna-se muito difícil, aliás eu fui-me abaixo porque eles não sabiam limpar filtros, tive que ser eu a fazer para mostrar como era.
Vou descansar, o inchaço das mãos está-me a incomodar…
……………………….
Afinal o descanso foi de pouca duração… a m**** da junta de expansão do colector de evacuação rebentou de vez e lá tivemos que parar a máquina e, porra que já chateia, tive que arranjar uma solução a correr, olha foi tapar aquela m**** e passar um cabo de aço afim de manter tudo em posição afim de que os gases não queimem nada na casa da máquina. Agora é só aguentar dois dias até ao próximo porto. Com esta porcaria toda queimei as mãos, escaldei-as apesar das luvas e quase que me fui abaixo outra vez, tenho de reconhecer que estou de rastos e estou um cocó. Qualquer esforço dá cabo de mim, estou esgotado e ando constantemente com 11/7 de tensão e 110 de batida cardíaca, qualquer esforço manda-me abaixo… assim nem forças tenho para me portar mal na Tailândia…
Estou a ouvir Mercedes Sosa e a beber o meu último whisky… vou descansar…



Continua……………..

Publicado no SOL no sábado, 25 de Outubro de 2008 8:04

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