quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Trabalhos na máquina 3

Estava num navio já com uns 12 a 13 anos de idade, nem era muito velho mas estava mal tratadito...
Um dos muitos problemas que ele tinha era uma válvula de “blowdown” da caldeira. Para quem não sabe uma caldeira tem muitas válvulas e uma delas é a de blowdown, peço desculpa pelos anglicismos mas habituei-me a utilizar nomenclatura inglesa, como ia dizendo a válvula de blowdown serve para despejar a caldeira ou para purgá-la dos sedimentos sólidos acumulados, deve-se fazer regularmente essa operação.
Nesse navio em especial havia um pequeno problema com as caldeiras, quando a arrancávamos tínhamos de a ter no nível o mais baixo possível sem chegar ao ponto de alarme para que quando fosse feito o arranque ela com a dilatação da água subia para o nível o ponto máximo. O que tínhamos de fazer era começar a consumir o vapor imediatamente (que era outra dores de cabeça) para evitar que as seguranças entrassem em acção e a mandassem para o chão. Quando isso acontecia, tínhamos que despejar a caldeira para a levar para níveis normais e fazer reset aos alarmes, ela com o nível alto não arrancava. Como podem ver essa válvula de blowdown era um componente crítico.
O sistema de blowdown embora se fale só na válvula era composto por várias:




Como se pode ver pelo esquema em cima.
Este caso passa-se com as duas válvulas fora da borda, são duas por questões de segurança. Normalmente são válvulas de boa qualidade e inspeccionadas pelas autoridades aquando das reclassificações.
A nossa válvula fora de borda, a que dava directamente para o mar, tinha sido substituída recentemente (um ou dois anos antes) por uma de qualidade discutível e eu numa das minhas inspecções detectei que ela pingava, estava tão corroída que estava a começar a estalar. E aqui começou uma verdadeira aventura, a substituição de uma válvula que dá para o mar, muito abaixo do nível de água, muitos metros mesmo.
Quis mudar a válvula porque á noite estamos a navegar em situação de condução “desantedida”, que significa que não está ninguém na casa da máquina, os sistemas estão no automático e temos os alarmes (especialmente os de nível das cavernas) em condições de modo a avisar em caso de inundação. Embora tenhamos uma série de seguranças nunca gostei de ser apanhado pelas situações, prefiro ser eu a escolher a altura em que faço o trabalho e não deixar que o acaso faça a sua escolha. Então comecei a convencer o chefe de máquinas, o que não deu muito trabalho pois aquilo estava mesmo em mau estado.
Começou então a preparação. Primeiro arranjei parafusos e porcas novas, em inox, para substituir as antigas que estavam num estado miserável. Comecei a substituir um grupo de cada vez, mantendo a válvula na posição.
Quando já tinha parafusos e porcas novas passei á fase seguinte, fazer uma palmeta ou raqueta para meter entre a falange da válvula e falange do encanamento de modo a isolar o conjunto todo. Foi feita a palmeta com as respectivas juntas e ficámos prontos para o trabalho.
Escolhido o dia fizeram-se as ultimas verificações, testou-se e verificou-se os sistemas de esgoto da casa da máquina de modo a prevenir alagamentos e ….. iniciou-se o trabalho.
Uma ressalva. Pôr uma junta cega (nome dado á palmeta ou raquete) numa válvula é uma operação trivial, pô-la numa válvula fora de borda muito abaixo do nível de água e com o navio a navegar já não é uma operação tão trivial como isso, as pessoas ficam nervosas.
Nestas coisas, como 1º maquinista, gosto de estar sempre á frente das coisas e então lá fui eu e o “fitter”, termo que em português é traduzido por artífice, começar a desapertar a válvula.
A operação seria muito simples, tirar um parafuso totalmente e aliviar os outros três (a falange é apertada por 4 parafusos, era uma pequena válvula) o suficiente para se pôr a palmeta e a junta.
Quando se desapertou a válvula começou a saltar água em grande quantidade, a válvula estava a uns 7 metros abaixo da linha de água o que significava uma pressão de 0,7 Kg/cm2. Aquilo fazia um chuveiro muito grande e rapidamente ficámos encharcados.
E começou a primeira contrariedade, o diâmetro da palmeta tinha ficado um bocado grande, tivemos que reapertar tudo e acertar o tamanho. Entretanto esta paragem e recomeço fez com que o pessoal ficasse um bocado mais nervoso pois o alarme de nível alto da caverna tinha tocado o que, embora fosse esperado, põe sempre as pessoas nervosas. Lembro-me de apenas dizer com voz calma, felizmente nestas situações sou bastante calmo, que aquilo era só água e que as nossas bombas aguentavam á vontade o caudal do encanamento todo aberto.
Veio a palmeta e voltou-se a tentar. Como eu disse antes, uma junta cega é uma operação trivial e foi o que aconteceu, mais uma grande “banhada” e lá pusemos a junta cega ficando tudo seguro, a válvula já se podia partir que nada aconteceria.
Foi pedido o fornecimento e substituição da válvula pois como disse inicialmente ela era crítica para a operação, mas isso já é outra história, apenas digo que o navio foi vendido com uma junta cega na válvula fora de borda do sistema de blowdown das caldeiras, lindo . . . .

PS: tenho pena de não ter imagens comigo

Publicado no SOL no domingo, 3 de Fevereiro de 2008 22:16

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Uma gaivota disse: